9/26/2006

Pequenos Burgueses, Gorki

Gorki foi um dos mais importantes teatrólogos russo. Com seu realismo socialista usou o teatro como manifestação política. Pequenos Burgueses é uma peça de teatro, também inicie o romance Mãe, mas por razões mais fortes não conclui. A peça retrata os dramas, as tragédias e as comédias de uma classe que vive entre o céu e o inferno. Nada mais triste viver no ponto médio aristotélico, no entanto, é extremamente difícil deixá-lo. Seus grilhões são ora invisíveis, ocultos e dissimulados ora límpidos, transparentes e evidentes. Em um momento procura se libertar, em outro se acomoda diante os pequenos prazeres e facilidades que a própria contradição possibilita vivenciar. Em uma passagem fica claro um drama desta condição social: “Eles representam dramas sobre os sofrimentos do amor, mas ninguém enxerga os dramas que explodem na alma do homem que se encontra no conflito entre ‘querer’ e ‘dever’...” (45).
São vários os personagens que compõe o enredo. Não tenho condições nem informações para descrevê-los singularmente. O que eu mais gostei foi Teteriev, um afilhado do chefe da casa, que se mete a filosofar vez ou outra: “Quando dizeis que o mal se paga com o bem, vós vos enganais. O mal é uma qualidade que vos é inata. E por isso de pouco valor. O bem, vós inventastes e pagastes terrivelmente caro. E em virtude disso o bem é uma coisa valiosíssima, rara. Conclusão: colocar num mesmo plano o bem e o mal é inconveniente e inútil. E eu, em verdade, em verdade vos digo: pagai o bem com o bem somente! E nunca além do recebido, que é para não estimular no homem a tendência à usura. Porque o homem é ávido! Tendo recebido uma vez além do que lhe é devido, da próxima vai querer receber ainda mais. Mas não lhe pagueis menos do que lhe é devido. Porque, se o enganais uma vez, o homem é rancoroso; ele dirá de vós: são uns falidos! E deixará de respeitar-vos. E da próxima vez não será mais o ‘bem’ que ele vos fará. Ele se contentará, simplesmente, em vos dar uma esmola. Irmãos! Não há nada mais triste sobre a terra, nem mais repugnante, do que um homem dando uma esmola ao seu próximo. Pagai o bem estritamente com o bem. Quanto ao mal, pagai cem vezes mais. Sede pródigos aos retribuir ao próximo pelo mal que ele vos ocasionou. Se quando pedirdes um pão vos derem uma pedra, descarregai sobre sua cabeça uma montanha!” (p. 59). Convenhamos passagem digna de Maquiavel!
Outras passagens mostram algumas angústias desta condição miserável: “Quando eu digo ‘sim’ ou ‘não’, eu não digo por convicção... eu respondo, simplesmente: ‘sim’ e ‘não’... Às vezes uma pessoa diz ‘sim’, e logo em seguida pensa: será? Talvez seja ‘não’...” (p. 166).Ou ainda: “... talvez você tenha simplesmente medo, medo de crer... A fé cria obrigações...” (p. 166).
Existem também personagens que tentam consagrar seu heroísmo de alguma forma: “Eu vou obrigar a vida a me responder como eu quero. Não adianta tentar me fazer ter medo. Eu estou mais perto da vida que você! E sei, muito mais que você, que a vida é dura, que às vezes é repugnante, má. E que uma força desenfreada oprime o homem. Eu sei, e isso me deixa indignado. Mas essa ordem eu não aceito! Eu sei que a vida é uma coisa séria, mas ainda não está bem organizada. Para ajudar a organizá-la eu vou ter que dar toda a minha força, toda a minha juventude. Também sei que não sou nenhum herói, mas simplesmente um homem! E digo mesmo: não me importa, nós é que vamos vencer! E com todas as minhas forças, eu vou me colocar na própria espessura da vida. tratar de moldá-la, atrapalhando uns e ajudando outros.... Isso é a alegria de viver!” (p. 185).Mas no fundo todos seguem o mesmo principio que é: “inteligente dentro de medidas, estúpido dentro de medidas, bom dentro de medidas, mau dentro de medidas, honesto e canalha dentro de medidas, covarde e corajoso... você é um pequeno-burguês exemplar. Você encarna muito bem a mesquinharia consumada, esta força que derrota até os heróis... e que vive e triunfa” (p. 95).

9/23/2006

1984, George Orwell

Famoso por sua influência na atual maneira de fazer televisão, sobretudo, nos reality shows, 1984 é um romance que tem como pano de fundo uma estranha realidade, que embora fictícia, apresenta alguns elementos reais. Faz nos refletir sobre as prisões e controle de uma sociedade organizada por um Estado totalitário em que controla e organiza toda a vida social das pessoas. Não tenha certeza da veracidade dessa informação, mas fiquei com a impressão que grande parte da trama foi construída metaforicamente com a realidade socialista do século XX.
Winston Smith (personagem principal) encontra-se nessa sociedade fechada e seus sentimentos mais humanizados começam a florescer num turbilhão de contradições e inibições, onde a maioria das pessoas vive apática perante a ordem estabelecida pelo partido do Grande Irmão (Big Brother). Winston inicia um romance clandestino, longe dos olhos das Teletelas que vigiam tudo e todos. Seu par, cujo nome não me recordo, é uma mulher forte, decidida e que encontra no amor a única válvula de escape do autoritarismo exercido pelo Estado e a força para viver. No entanto, nosso herói vai mais além. Suas angústias e rebeldia chocam com a própria organização do partido que controla a vida e cujos lemas são Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão e Ignorância é Força. Tal Estado é organizado em Ministérios, por exemplo, Ministério da Verdade, cuja função é cuidar de notícias, diversões, instrução e belas artes e cujo lema é “Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o passado” (230). Outro objeto do Estado é impedir que a sociedade se torne culta e socialista “Num mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com banheiro e refrigerador, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza não conferia distinção. Era possível, sem duvida, imaginar uma sociedade em que a riqueza, no sentido de posse pessoal de bens e luxos, fosse igualmente distribuída, ficando o poder nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não poderia ser estável. Pois se o lazer e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa de seres humanos normalmente estupidificada pela miséria aprenderia ler e aprenderia a pensar por si; e uma vez isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde veria que não tinha função a minoria privilegiada, e acabaria com ela. De maneira permanente, uma sociedade hierárquica só é possível na base da pobreza e da ignorância.” (p. 178). Outro aspecto que ocupa papel importante na organização estatal é o estado de Guerra, e não necessariamente a guerra em si. O medo é fator importante para controlar e manipular as pessoas. Além do papel psicológico da guerra existe o econômico: “O problema era manter em movimento as rodas da indústria sem aumentar a riqueza real do mundo. Era preciso produzir mercadorias, porém não distribuí-las. E, na prática, a única maneira de o realizar é pela guerra contínua” (p. 179). Em outra passagem: “O essencial da guerra é a destruição, não necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. A guerra é um meio de despedaçar, ou de libertar na estratosfera, ou de afundar nas profundezas do mar, materiais que doutra forma teriam de ser usados para tornar as massas demasiado confortáveis e portanto, com o passar do tempo inteligentes” (179).
Este livro é referência importante para compreendermos o atual estado de coisas, pois, como disse, embora fictício, apresenta situações, sentimentos, comportamentos e relações que estão presentes nos dias controlados pelo quarto poder que tanto inspira suas ações em George Orwell e em suas elaborações de Novelíngua. E lembrem-se... "O Grande Irmão Zela por Ti!"

9/16/2006

A Idade da Razão, Jean-Paul Sartre

Sartre é um autor que sempre tive curiosidade de conhecer mais a fundo. Casado com Simone de Beauvoir, outra grande escritora que ainda não tive oportunidade de conhecer, Sartre foi sem sombra de dúvidas um dos maiores filósofos e escritores do século XX. Precursor da filosofia existencialista compreendia que a existência precede a essência e para entendê-la era preciso partir da subjetividade. A partir daí o homem é responsável pela sua existência, cada é um responsável pelo que faz por si e pelos outros: “Assim sou responsável por mim e por todos, e crio uma certa imagem do homem por mim escolhida; escolhendo me escolho o homem”. Não irei me aprofundar na filosofia existencialista, quem sabe em outra oportunidade e em outro lugar. O fato é que todo esse arsenal filosófico está implícito e, às vezes, até explícito, no romance A idade da Razão.
O livro é a estória de um casal de “namorados” de meia-idade em que a mulher fica grávida. Tratava-se de um relacionamento sem muitos compromissos assumidos e resguardados de entregas. Após a notícia da gravidez o protagonista se lança no intento de conseguir dinheiro para realizar um aborto. Durante o processo vários acontecimentos fazem como que ele questione as escolhas de sua vida: “Talvez não possa ser de outro modo; talvez seja preciso escolher: não ser nada ou representar o que é. Mas é terrível, essa trapaça da nossa própria natureza” (p. 212). Em outra passagem fica evidente a filosofia existencialista: “É um dever fazer o que se quer, pensar o que se bem entende, ser responsável perante si próprio apenas, analisar permanentemente o que se pensa dos outros” (p. 168). Há também um certo contato com realidades obscuras de si mesmo: “Estou aqui, saboreio-me, um gosto desconhecido de sangue e água ferruginosa, meu gosto, eu sou meu próprio gosto, eu existo. Existir é isso: beber-se a si próprio sem sede” (p. 62). Revoltas contra o sistema: “Agrada-me indignar-me contra o capitalismo, mas não desejo que o suprimam, porque não teria mais motivos de indignação. Agrada-me sentir-me desdenhosos e solitário, agrada-me dizer ‘não’, sempre ‘não’, e teria medo que se construísse um mundo viável porque teria que dizer ‘sim’ e fazer como os outros” (p. 151). Outro contra a própria condição dentro dele: “Escritores de domingo! Pequenos burgueses que escreviam anualmente um conto, ou cinco ou seis poemas, para pôr um pouco de ideal na vida” (p. 95). Confesso que nesta passagem me identifiquei muito. Há também questionamentos sobre a própria liberdade: “Minha vida constrói-se por debaixo desse mito [da liberdade] com um rigor mecânico, um vazio, o sonho orgulhoso e sinistro de não ser nada, de ser sempre outra coisa diferente do que sou” (p. 263). Como as nossas decisões refletem na sociedade: “É preciso ter a coragem de fazer como todo mundo para não ser como ninguém” (p. 131).
Todas essas indagações se inserem e compõem o universo de um homem que se encontra na Idade da Razão e reflete sobre suas decisões na existência, o que fez na sua vida e no que ela se transformou. Com todos esses questionamentos que vão no fundo da alma de qualquer leitor, não poderia deixar de ter sobre a juventude: “Começo a crer que nós é que somos moços. Queríamos buscar os homens feitos, éramos ridículos, mas eu pergunto se o único meio de salvar a mocidade não será esquecê-la” (p. 262).

9/11/2006

O Estrangeiro, Albert Camus

Tenho diante de mim uma tarefa importante: comentar e criticar o clássico livro de Albert Camus, O Estrangeiro. Para ser sincero não me recordo com exatidão quando tive o primeiro contato com o autor. Lembro-me que era uma frase sobre o suicídio. Dizia mais ou menos que o verdadeiro problema filosófico é o suicídio, pois trata de uma resposta se a vida vale a pena ou não, ou coisa parecida. Como disse não me recordo com exatidão. O fato é que Camus foi um autor polêmico e que recebeu diversos rótulos, dentre eles, niilista, existencialista, comunista, revoltado e inclusive reacionário. Nasceu na Argélia em 1913 e morreu em 1960 em um acidente de carro.
O livro inicia com a notícia da morte da mãe do Sr. Meursault, o protagonista. No entanto, este fato que aparentemente seria tratado com desespero pela maioria das pessoas, Camus descreve um universo psicológico calmo, comum e com um tom de cotidianeidade que impressiona qualquer leitor. Este universo, confesso, lançou-me no próprio paradoxo de sua realidade incomum. Segue um trecho que elucida bem este sentimento: “Pensei que passara mais um domingo, que mamãe agora já estava enterrada, que ia retomar o trabalho, e que, afinal, nada mudara” (p. 26).
No decorrer do enredo, o Sr. Meursault estabelece algumas relações com um vizinho que o envolve em problemas de violência contra sua namorada. O fato é que a trama se desenvolve a tal ponto que o nosso herói mata o irmão da namorada do amigo. Neste momento inicia a descrição de outra realidade estranha ao protagonista, mas que carrega o mesmo tom de normalidade e cotidianeidade dramática. Camus constrói conexões e elabora questões que não é o fato de estar preso, ou ter matado um homem, ou vivenciado a morte da mãe recentemente, que lhe dão o tom dramático, mas sim a própria existência humana. O fato de estar vivo, preso ou não, que é estranho. “Nessa época, pensei muitas vezes que, se me obrigassem a viver dentro de um tronco seco de árvore, sem outra ocupação além de olhar a flor do céu acima de minha cabeça, ter-me-ia habituado aos poucos” (p. 77).
Camus invadiu minha vida sem pedir licença e me fez questionar a frágil vida diante da morte e dos acasos do destino. As relações com os hábitos, costumes, cultura e valores que nos fazem estrangeiros de nós mesmos. É interessante que essas questões são abordadas durante o julgamento, e, de certa forma, me fez lembrar do universo de Josef K., em O processo, de Franz Kafka, com a justa diferença de que o universo kafkiano é mais intenso, denso e obscuro. Dois trechos elucidam bem este momento em que o nosso herói torna-se estrangeiro de sua vida: “não compreendia bem por que motivo as qualidades de um homem comum podiam tornar-se acusações esmagadoras contra um culpado” (p. 101) e “a mim parecia-me que me afastavam ainda mais do caso, reduziam-me a zero e, de certa forma, substituíam-me” (p. 104).
Este foi o meu olhar do livro que não atendeu as minhas expectativas. É claro que gostei, seria injusto um julgamento negativo com o principal autor que dissertou sobre a teoria do Absurdo. Mas... Por fim, gostaria de terminar com uma frase auto-biográfica de Camus: “lutar até o fim pela liberdade. Manter viva a revolta contra os limites, contra as fórmulas, porque a revolta é o próprio movimento da vida, que não pode ser negada sem que se renuncie a viver”.